sábado, 29 de janeiro de 2005

Sentido de humor?

Chamámos pelo intercomunicador a D. Maria. Era uma primeira consulta, de Ginecologia. Entrou uma senhora de idade, devia rondar os 75 anos, acompanhada por outra mais nova, que lhe amparava os passos. Sentou-se, lentamente, na cadeira à nossa frente, e perguntou "Então mas eu estou doente, é?". Sorrimos, perante o aparente sentido de humor da D. Maria. Quando perguntámos o que a tinha levado à consulta de Ginecologia perguntou-nos "mas afinal eu estou aonde?". Afinal parecia que a pergunta da D. Maria tinha sido sincera, não era de facto uma questão de sentido de humor. Quando questionada sobre a sua idade, a D. Maria não esteve com meias medidas: "Sei lá eu! Não me lembra. Diz aí 67? Deve ser isso, deve!". A senhora que a acompanhava corrigiu: "São 77.". Reparei então que envergava uma bata da Santa Casa da Misericórdia. Seguiram-se as perguntas da praxe, e todas levaram um ponto de interrogação à frente na ficha de consulta. Explicava a carta do Centro de Saúde que a D. Maria tinha um prolapso uterino. Isso significa que, por vários motivos entre os quais o enfraquecimento dos tecidos e músculos, o útero está "descaído" para fora da vulva, levando consigo a vagina. Mas a D. Maria não sabia, sabia lá!, se tinha ou não uma "bola" a sair "lá por baixo". Com alguma dificuldade levantámo-la da cadeira, para a deitar na marquesa de observação ginecológica. Perguntava repetidamente "Quem são estes? Onde vamos? O que é que estou aqui a fazer?", perguntas às quais dávamos a resposta, para de novo serem repetidas. Confirmava-se o diagnóstico. Além do prolapso tinha também rectocelo e cistocelo (o que quer dizer que com o útero eram arrastados para fora da vulva o recto e a bexiga). Segundo informações da acompanhante, a D. Maria não sangrava dali, e quando se falou em cirurgia prontamente encontrou a lucidez para dizer que "não preciso de nada disso, está muito bem assim, não quero saber disso!". A D. Maria não tinha família, vivia num lar da Sta. Casa da Misericórdia, e tinha doença de Alzheimer. Não sentimos necessidade de insistir com a cirurgia, enquanto não perdesse sangue, e já que não demonstrava vontade de ser operada. Voltou a sentar-se, continuando a perguntar as mesmas perguntas: "Quem são estes? Vamos a algum lado?". Depois da consulta, a acompanhante ajudou-a a levantar-se. Quando lhe vestia o casaco ela perguntou, mais uma vez, se iam sair, se iam a algum lado. Quando nos despedimos perguntou-nos quem éramos. O que lhe queríamos. Perguntou depois à acompanhante se eramos conhecidos dela. E assim foi, passo a passo, de volta para o seu lar, com o seu prolapso uterino.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2005

Olho clínico ou intuição?

A Miroslava, Ucraniana de 25 anos, estava grávida de 38 semanas. Estava a ser seguida há duas semanas nas consultas de Obstetrícia do Hospital, e vinha hoje ao Hospital para fazer CTG (cardiotocografia - é um exame que mede as contracções uterinas e a frequência cardíaca do feto). O CTG mostrou que havia já bastantes contracções do útero, e a frequência cardíaca do feto era normal e não mostrava sinais de qualquer problema com o bebé. Como a última ecografia mostrava que o bebé era pélvico (estava de "rabo virado" para a saída) resolvemos fazer uma ecografia rápida só para avaliar a posição do bebé. Confirmou-se a suspeita: era pélvico. O toque mostrava que o colo do útero não estava ainda preparado para o parto. Ponderou-se então se se deveria deixar seguir o trabalho de parto ou se se enviava a Miroslava para casa, para voltar na semana seguinte (ou mais cedo caso o trabalho de parto começasse entretanto ou surgisse algum sinal de alerta). O factor que pesou mais no sentido da permanência no Hospital foi a distância a que vivia a Miroslava: vivia a mais de 100 Km do Hospital. Foi uma decisão um bocadinho polémica, já que não havia um motivo verdadeiramente palpável para a indução do trabalho de parto (faltavam duas semanas para o termo da gravidez e a única coisa que havia de significativo era a contractilidade uterina). Mas assim foi: internou-se a Miroslava. Com a evolução da situação, tornou-se claro que a posição do bebé dentro do útero era desfavorável ao parto "normal" por via vaginal, e decidiu-se avançar com a cesariana. Não havia qualquer sinal de problemas com o bebé, e a Miroslava optou por um tipo de anestesia em que a parte inferior do corpo fica anestesiada, mas a pessoa fica acordada durante a cirurgia. Foi então para o bloco operatório, foi anestesiada, e começou a cesariana. Estavam duas Obstetras a operar, e eu estava como ajudante. Foi feita a incisão na pele, afastados os músculos abdominais, e finalmente entrou-se na cavidade abdominal. O passo seguinte foi a incisão no útero, por onde teria que saír o bebé. Foi então que, como sempre acontece, jorrou líquido amniótico da incisão feita no útero. No entanto algo não estava bem: o líquido amniótico não era da cor normal, era antes esverdeado. As únicas palavras ditas, uma vez que a Miroslava estava acordada, foram suficientes: "O líquido é meconial.". A sala gelou. Todos sabiam o que aquilo significava: existia mecónio (fezes do bebé) no líquido amniótico, o que indicava sofrimento fetal. Os Pediatras prepararam-se imediatamente para a possibilidade de ter que reanimar o bebé. Rapidamente começaram a tirar o bebé do útero. Sairam as pernas e o rabo, e algo de pouco frequente aconteceu: o útero contraíu-se violentamente, apertando o que ainda lá estava do bebé. As duas Obstetras começaram a lutar (de uma forma muito física) para tirar o bebé, mas parecia não resultar. Foi com muita dificuldade que sairam os ombros, e a cabeça parecia recusar-se a sair. O bebé começou a tentar respirar, ainda com a cabeça lá dentro, o que parecia piorar as coisas: estava a aspirar líquido amniótico e mecónio. Entretanto, e com muitíssima dificuldade, percebeu-se que o cordão umbilical estava enrolado à volta do pescoço do bebé (circular). Retirou-se a circular, mas ainda assim o bebé não saia. Na sala respirava-se uma tensão imensa, e a Miroslava começava a perguntar se estava tudo bem. Já ninguém podia evitar praguejar, apesar de baixinho, já que a situação parecia cada vez mais difícil. Da rápida remoção do bebé dependia a sua sobrevivência e o seu estado neurológico. Poderia morrer ou ficar com lesões cerebrais irreversíveis se demorasse mais alguns segundos do que era suposto. Entretanto mais um dado: uma segunda circular. Com dificuldade retirou-se a segunda circular. O cordão umbilical era fininho demais, o que justificava parcialmente o facto de o bebé estar em sofrimento e ter o líquido meconial. Com bastante força de braços, e com uma ansiedade tremenda, finalmente conseguiu-se retirar a cabeça do bebé do interior do útero. Cortei rapidamente o cordão umbilical, e em poucos segundos os Pediatras levaram o bebé em passo de corrida para o berço. Ainda no bloco, ouvi a agitação que decorria lá fora, enquanto tentavam reanimar o bebé. Entretanto, e visivelmente stressadas, as Obstetras retiraram a placenta do interior do útero, e começaram a concluir a cirurgia. Entretanto, o que trouxe um suspiro de alívio, ouvimos o bebé chorar. Significava, pelo menos, que estava vivo.

Tanto quanto é possível saber, o bebé parece estar bem. No entanto, só a longo prazo se entenderão as consequências de tão complicado trabalho de parto. É este um dos casos em que, por mais que se tenha a certeza que se fez tudo o que estava ao alcance, nunca se fica com a consciência perfeitamente tranquila. Poderá confortar um pouco, quanto muito, perguntarmo-nos o que teria acontecido se se tivesse optado por a enviar para casa. O bebé estava em sofrimento, e a distância a que vivia a Miroslava poderia comprometer o resultado de 38 semanas de ansiedade. Foi olho clínico ou intuição?

domingo, 23 de janeiro de 2005

Mais uma

Quando acabámos de observar a Luísa, que estava no termo da gravidez, chamáram-nos à porta. Era uma enfermeira do hospital, que trazia a sua sobrinha Carla para ser observada na urgência de ginecologia, a pedido dos colegas da urgência central. Perguntámos o motivo que as levava ao SU, e foi-nos dito que tinha dores pélvicas e uma anemia grave, pelo que estava até deitada numa maca. Mandámos entrar a filha, a mãe e a tia ficaram fora da sala. Antes de a observarmos fizemos as perguntas habituais. A Carla tinha 28 anos e tinha começado há alguns dias com dores pélvicas. Tinha aparecido o período menstrual, desta vez em quantidades superiores às habituais. Afirmou que o seu período menstrual era habitualmente abundante, mas desta vez tinha sido ainda mais. Não tinha tido qualquer atraso no período menstrual, afirmava claramente. Pedimos-lhe então que se deitasse na marquesa de observação. Assim que se despiu da cintura para baixo e se deitou na marquesa ginecológica surgiu um cheiro fétido, típico de uma infecção bacteriana, que imediatamente preencheu a sala com um ambiente pesado. A enfermeira, a médica e eu tivemos a mesma reacção, perfeitamente instintiva: todos franzimos a cara pela extrema intensidade do cheiro. Perguntámos se não tinha notado naquele odor fétido. Disse-nos que sim, olhou para o lado, e não disse mais nada. O ar comprometido dela e o novo dado adquirido fizeram-nos automaticamente desconfiar da veracidade da sua história. Colocámos o espéculo, e percebemos que do interior do útero, cujo colo estava dilatado, saía um material purulento e sanguinolento muito abundante. Era daí que vinha cheiro fétido. Tinha, aparentemente, uma infecção grave do útero que se designa endometrite (infecção do endométrio). Com uma pinça própria, e dada a dilatação do colo, drenámos o líquido fétido do interior do útero. Juntamente com o líquido fétido saíam massas disformes de material sólido. A ideia que aos poucos ganhava forma na nossa cabeça tornava-se cada vez mais clara. Perguntámos se não tinha engravidado e se não tinha feito qualquer manobra abortiva. Negou, com muito pouca convicção. Explicámos calmamente que não estávamos ali para criticar ou fazer juizos de valor fosse ao que fosse, que nos importava somente a saúde dela, e que precisávamos de saber a verdade para a tratarmos convenientemente. Manteve os olhos virados para o lado, e não voltou a abrir a boca. Saíu da marquesa, deitou-se na maca, e ficou numa sala a fazer soros endovenosos. O objectivo era deixar encher a bexiga para fazer uma ecografia pélvica. Algum tempo depois pudémos fazer a ecografia, e confirmar o que tinhamos visto antes: havia abundante conteúdo líquido e sólido no interior da cavidade uterina. As análises laboratoriais eram consistentes com infecção grave. Ficou internada para fazer antibiótico endovenoso.
Em termos clínicos poucas dúvidas restavam que questionassem o óbvio: a Carla tinha feito uma interrupção de gravidez, provavelmente de uma gravidez já relativamente "adiantada". A vergonha e ilegalidade do que tinha feito fizeram-na esconder o sucedido durante algum tempo, tempo suficiente para adquirir uma infecção uterina muito grave, com possível esterilidade futura. Isto, claro, se pudesse ser evitada a histerectomia (remoção do útero), tal era a extensão e gravidade da infecção. Isto para não dizer que a mera sobrevivência da Carla naquela situação não era um dado totalmente adquirido.

Esta é só mais uma das muitas histórias semelhantes que se passam neste país, de norte a sul, consequência do aborto ilegal.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2005

Pânico

Estávamos a examinar a D. Maria, na urgência de Ginecologia/Obstetrícia, quando entra de rompante na sala uma mulher de aproximadamente 25 anos. Vinha a chorar compulsivamente, e não conseguia articular mais de duas palavras seguidas. Entre o choro e os soluços dizia repetidamente "Estou a abortar! Estou a abortar!". Enquanto a outra doente saía da sala, a enfermeira tentou acalma-la. Quando falámos com ela já estava um pouco mais calma, e conseguiu-nos explicar o que se passava. Há cerca de dois meses tinha descoberto que estava grávida. Tinha planeado engravidar há alguns meses, e finalmente tinha conseguido engravidar. Poucos dias depois de engravidar teve perdas de sangue pela vagina, e verificou-se que se tinha de facto tratado de um aborto. Passados dois meses notou novo atraso no período menstrual. Tinha ido nessa mesma manhã à farmácia comprar um teste rápido de gravidez. Em casa fez o teste, que deu positivo. Nessa mesma tarde notou perdas de sangue pela vagina, altura em que entrou em pânico e se dirigiu à urgência. Contas feitas, a gravidez tinha apenas 6 semanas de duração. Já mais calma, sentou-se na marquesa de observação. Introduzimos o espéculo, e as perdas sanguíneas que observámos eram mínimas, compatíveis com uma pequena hemorragia que é normal aquando da implantação do ovo na parede do útero. Confirmou que de facto tinha notado apenas uma mancha ténue de sangue na roupa interior. Foi devidamente tranquilizada , e recebeu nas mãos um "presente" que a deixou com os olhos a brilhar. Foi incapaz de esconder um enorme sorriso triunfante quando, após ter entrado nas urgências pensando que estava a abortar, levou entre as mãos o "livro verde da grávida".

quarta-feira, 19 de janeiro de 2005

Quando nos viramos contra nós próprios

As doenças autoimunes são doenças em que o nosso sistema imunitário (o "exército" de defesa do nosso organismo contra agentes externos) deixa de saber reconhecer, de uma forma mais ou menos extensa, o que é do próprio organismo. Dessa forma, o sistema imunitário combate os nossos órgãos e células como se de organismos estranhos se tratassem. Se há doenças autoimunes específicas de determinados órgãos, outras há que afectam todo o organismo. A doença-mãe de todas estas doenças é o Lupus. Mas estas doenças podem-se manifestar de variadíssimas formas.

A Ana tinha 25 anos quando decidiu engravidar. Por motivos que na altura ninguém soube explicar, teve vários abortos espontâneos. Aos 30 anos aconteceu uma coisa dramática: de um dia para o outro deixou de ver do olho esquerdo. Na altura os médicos explicaram-lhe que aquilo tinha sido provocado por um "entupimento" da artéria que nutre o olho. Ficou com perda completa de visão no olho esquerdo. Um ano depois outro susto bizarro: sentiu toda a metade direita do corpo dormente e paralizada. Foi transportada para o Hospital, onde lhe foi diagnosticado um AVC. Situação raríssima em mulheres jovens, suspeitou-se da presença de alguma outra doença por trás daquele AVC, mas na altura não se conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Recuperou apenas parcialmente das sequelas do AVC. Assustou-se novamente quando, poucos meses depois, sentiu a perna direita ficar muito inchada e azulada. No Hospital foi-lhe diagnosticada uma flebotrombose (coágulo numa veia profunda da perna). Recuperada desta situação passou a ser seguida de muito perto pelos médicos, que após fazerem variadíssimas análises à coagulação, entre outras coisas, à Ana nada encontraram. Algum tempo depois surgia uma hipótese de resposta para o problema: uma doença autoimune até há muito pouco tempo desconhecida causava abortos de repetição e tromboses várias nas artérias e veias dos doentes. Quando se tornou possível, analisaram o sangue da Ana no sentido de verificar se tinha o Síndrome dos Anticorpos Anti-fosfolípido (SAF). Entretando a Ana tinha já perda parcial de visão no olho direito, e tinham-lhe sido detectadas alterações nas válvulas do coração que condicionavam gravemente a sua função e punham em risco os restantes órgãos. Quando finalmente chegaram as análises, confirmou-se o diagnóstico de SAF.

Acompanhei o caso da Ana durante o 3º ano da Faculdade. Na altura tudo aquilo me parecia bastante estranho. Muitas coisas diferentes aconteciam na mesma doente, em pontos diferentes do organismo, e se umas pareciam ter uma causa (como as tromboses venosas e arteriais), outras eram diferentes (como as lesões nas válvulas do coração). Acompanhei de perto a doente, e cheguei inclusivamente a assistir à cirurgia cardíaca que lhe foi feita para substituição da válvula aórtica. A terapêutica farmacológica nunca chegou a ser suficiente para controlar a doença completamente, mas desde então perdi o rasto a esta doente. Lembro-me de pensar, na altura, como podia ser dramático quando o nosso corpo se vira contra si próprio...

domingo, 16 de janeiro de 2005

Será normal?

Urgência de Ginecologia/Obstetrícia, 16h00. Chamámos através da porta o nome da próxima doente. Entrou, sentou-se, e nós começámos as perguntas habituais. Tinha 30 e poucos anos, era mãe de dois filhos - o mais novo com 3 anos. Não estava grávida, veio por outros motivos. O motivo que a trouxe já se arrastava há pelo menos um ano. Não tinha surgido nada de novo, continuava a ser o mesmo problema. Estava bastante relutante em contar que tipo de problema se tratava, e foi com dificuldade que nos disse: "É que saem fezes da minha vagina. Saem quando estou na casa de banho, pelo ânus e pela vagina, e saem também ao longo do dia.". Pergunta óbvia, perguntámos porque é que nunca tinha dito isso a nenhum médico. Disse-nos que "Não sabia se era normal isso acontecer... Hoje calhou em conversa com a minha mãe, e ela disse-me que achava que não era normal e que era melhor vir ao hospital...". O mais provável era estarmos em presença de uma fístula recto-vaginal (orifício de comunicação entre o recto e a vagina). Os partos dos dois filhos tinham ambos sido cesarianas, pelo que não poderiam ser responsáveis pela fístula. Contou-nos mais tarde que tinha vindo uma vez há urgência há mais de um ano, a propósito de uma relação sexual traumática. Durante uma relação sexual tinha começado a sangrar abundantemente, pelo que veio à Urgência. "Agora que penso bem, até foi um bocado depois disso que me começaram a sair fezes pela vagina...", disse-nos. Deitou-se na marquesa de observação, e confirmámos o diagnóstico . Havia de facto um orifício com cerca de um centímetro de diâmetro que colocava em comunicação a vagina e o recto. A solução do problema seria cirúrgica, e ficou imediatamente referenciada para a consulta de Ginecologia.

Mais do que a presença da fístula, abismou-nos a dúvida da senhora: "Será normal?". E com isto conviveu durante mais de um ano, provavelmente com vergonha de perguntar a alguém aquilo que se andava a perguntar a si própria: "Será normal?"...

sexta-feira, 14 de janeiro de 2005

Diálogo vs. monólogo

(comentário pré-consulta: "Aiii... A próxima é uma chata, não vem cá fazer nada... Já lhe tentei dar alta da consulta - da qual já não precisa - mas volta sempre cá! E para nada... Vais ver...")

- Ora bom dia, D. Luísa, pode entrar! Este é o Dr. JC, está aqui a ajudar-me nas consultas hoje.
- Bom dia, Drª, muito prazer Dr! Ai é tão novinho, faz lembrar o meu neto, o Manuel, também é assim rechonchudinho! Sem ofensa sôtor! Posso sentar, Drª? Obrigada!
- Faça fav...
- Ai, já estou lá fora há tanto tempo, que nem sei, Drª, a gente vem para aqui às 8h00 e é um dia perdido! Levamos o dia todo nestas andanças! Estava até a comentar com uma senhora ali na sala de espera, que tem problemas nos joelhos e não pode andar, tem que apanhar a carreira quando tem que vir ao hospital à consulta da Drª Mariana, que está aqui no consultório ao lado, mas ela vem cá é por causa das coisas das senhoras, né, não é dos joelhos que isso é com o Dr. António, o ortopedista daqui, conhece Drª? É que...
- Oh D. Luísa, espere lá um bocadinho! Deixe lá a sua amiga e conte-me de si, o que é que a traz por cá desta vez?
- Nem sabe Drª, tenho passado mal, mal, mal! A minha cabeça dói-me que é uma coisa que nem imagina Drª!
- Mas D. Luísa, isto é a consulta de Ginecologia, já falou disso à Médica de Família?
- Já, Drª, e até já estou a tomar uns comprimidos, parece que é "Amigan" ou qualquer coisa assim... Eu queria tomar um que é o... ai, não me lembra, mas que a minha cunhada, sabe a Almerinda, também é doente da Drª, tem um problema nos ovários, coitadinha, mas ela tomava um, né, que lhe fazia maravilhas! Eu quis tomar esse, mas a Drª. da caixa não mo deu...
- Então mas diga lá, a senhora foi operada há seis anos, não é?
- É Drª, tirou-me tudo cá de baixo, lembra-se? Eu andava a perder sangue...
- Pois, D. Luísa era isso, sim... E agora, passa-se alguma coisa? Tem sangrado, doído, alguma coisa diferente?
- Não, Drª, nada disso! Vinha era cá mostrar uns exames que a Drª. da caixa me passou, para a Drª escrever aí nos seus papéis! São estes, olhe... [surge um saco de plástico do Jumbo, de onde tira uns três quilos de papel - ecografias com 10 anos, análises laboratoriais desde mil novecentos e troca o passo, e tudo o mais que se possa imaginar - e começa o seu complexo processo de triagem em cima da mesa] Ora estas são antigas... Estas também... Ah, estas são as da vesícula, quer ve-las?
- Oh D. Luísa espere aí... Veja lá só as que têm a ver com a ginecologia, as mais recentes, veja lá...
- Espere lá, estão práqui algures... Ora, AH! Estas são as dos ossos, sotôra, a Médica de Família disse que estava tudo bem, mas eu queria mostrar também a si...
- Está tudo bem, sim senhora, D. Luísa, mas não era preciso vir aqui se já tinha ido à Médica de Familia mostrar e se estava tudo bem...
- Ah, mas eu sei lá, sabe como são esses médicos da caixa... O meu doutor da privada também os viu, mas como é uma coisa que a Doutora já me tinha passado uma vez achei que também devia ve-las!!
- Enfim, mas está tudo bem... Mas alguma coisa, D. Luísa?
- Ah, não, Doutora, tenho andado muito bem... Mas diga-me la, está tudo bem com o seu marido? E os filhos? Estão grandes, né? Eles crescem, olhe, os meus já estão grandes e só fazem disparates, valha-me Nossa Senhora... O mais novo não quer estudar, só quer é copos e meninas, veja lá... A minha Josefa casou agora com o filho da Manuela, a florista, a que...

(...) [Pretendo com esta omissão não aborrecer os eventuais leitores com a vida da D. Luísa. Fique a ideia de que a conversa se prolongou por 15 minutos, com temas absolutamente irrelevantes para a consulta. Muitas foram as tentativas de terminar a consulta, mas absolutamente inglórias...]

... e o mais velho lá anda, na vida dele... Enfim, Doutora, tenho mesmo que ir, a camioneta da carreira deve estar quase a passar, e como perdi aqui a manhã inteira tenho que ir cozinhar o almoço ao meu Manuel!
- Vá lá então, D. Luísa, não perca a camioneta...
- Adeus, dê cá um beijinho doutora, e Doutor, muito prazer e felicidades! É tão novinho, credo, custa a crer que é Doutor também...

quarta-feira, 12 de janeiro de 2005

Morrer na praia

Passando visita ao serviço de urgência, fui ficando a par dos casos que aguardavam resolução. Nos quartos estavam duas mulheres para curetagem, e nas salas de dilatação estavam duas grávidas. Numa sala estava uma grávida de termo: fizemos o toque ginecológico e estava já com a dilatação do colo uterino bem avançada, quase pronta para parir. À porta da outra sala parámos. Espreitei e vi uma gravida bem grávida, com ar de grávida de termo. Não entrámos logo, e os colegas que saiam de banco puseram-nos a par da história.

A Helena e o marido pretendiam ter um bebé. Foram à consulta de planeamento familiar, e a páginas tantas a Helena finalmente engravidou. Seguiu adequadamente a gravidez no seu médico de família e fez as análises laboratoriais e exames ecográficos adequados. Não houve nenhuma intercorrência durante quase toda a gravidez. Estava já a ser seguida nas consultas de obstetrícia do hospital, aproximavam-se as 36 semanas. Tinha ouvido todas as recomendações e os sinais de alarme a que deveria atentar para recorrer à urgência. Na véspera a Helena tinha sentido um desses sinais de alarme: não tinha sentido movimentos fetais. Foi, como recomendado, à urgência. Aí verificou-se o pior cenário. Não havia batimentos cardíacos fetais. O bebé tinha morrido.

A Helena estava, às 36 semanas de gravidez, deitada na sala de dilatação à espera de parir um feto morto. Olhos no tecto, esperava pelo amolecimento, encurtamento e dilatação do colo. Tal e qual como a grávida da sala ao lado. Sabia que ia ter que respirar como lhe tinham ensinado nas aulas de ginástica pré-parto, que teria que fazer força, que teria que sofrer. Tal e qual como a grávida da sala ao lado. Mas sabia, ao contrário da grávida da sala ao lado, que não iria ouvir o tímido gemido do bebé que respira pela primeira vez. Aquele bebé nunca iria respirar. 36 semanas depois.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2005

Descubra as diferenças

A Ana entrou no consultório com um ar estafado. Estava grávida de termo, e parecia estar longe de parir. Rebolou-se até à cadeira, sentou-se com um estrondo, e ficou parada, ofegante, durante uns segundos. Depois disse "Olá Doutor! Pufff, pant...". Sorriu, e eu sorri de volta. As varizes estavam cada dia maiores, as hemorróidas atingiam o auge, a barriga estava enorme e pesava trezentos quilos. Além disso a cara estava inchada e escura, e a barriga enorme tinha uma enorme linha negra que parecia o primo vertical do equador. Respirava mal, e não tinha fôlego para andar dez metros de seguida. Mas disse-me "Está tudo óptimo! Já podia era nascer, mas o gaiato não há meio de querer sair... Temos que ter paciência, não é?". Despiu-se afogueada, e com muita ajuda lá rebolou para cima da marquesa. Fiz o toque obstétrico, e as notícias mantinham-se: "Ana, o colo está fechado, formado, e a apresentação está altíssima... Traduzindo, não quer sair de modo nenhum!". Sorriu, chamou-o de preguiçoso, e voltou a rebolar para o chão. Vestiu-se e sentou-se, sempre com o mesmo ar sorridente e ofegante. "Volte na terça feira, estamos de banco. Faz 41 semanas, e não podemos esperar muito mais. Teremos que induzir o parto, a menos que ele se decida a sair sozinho! Vá passear para o Jumbo, pode ser que ele vá descendo!". Deu uma gargalhada e disse que apesar de não poder dar dez passos seguidos iria fazer um esforço. Sempre com um sorriso despediu-se "até terça!", e rebolou novamente para fora da sala.

A Cláudia esteve de manhã na Urgência. Estava com 37 semanas de gravidez, uma gravidez normalíssima. Foi lá porque tinha "muitas, muitas dores das contracções! A barriga fica dura, dura, parece pedra!". O toque mostrou que aquele útero prometia manter o bebé lá dentro durante mais uns tempos, e o CTG mostrou uma absoluta ausência de contracções. Quando confrontada com a realidade dos exames mudou o discurso "Tenho tido algumas contracções, mas não aguento é mais a gravidez! Estou farta!". Explicámos que para o bem do bebé não se deveria induzir o parto. A maturação completa do feto ainda não tinha chegado, e seria nocivo retira-lo antes de tempo. Quando saiu a minha tutora explicou-me: "Tem vindo TODOS os dias à urgência desde as 32 semanas! A mãe é auxiliar de acção médica neste Hospital, e todos os dias insiste com TODOS os médicos do serviço para que induzam o parto à filha.".
Sete da tarde, chamamos a próxima doente. Era a Cláudia... Tinha caído, disse. "Mas ficou com dores, ou contracções, ou perdas de sangue, ou perdas de líquidos?". Nada disso, doiam-lhe as costas da queda, "Doutora, faça-o nascer agora!". Mais uma observação, um toque, um CTG, e o mesmo diagnóstico: estava grávida, e ia assim ficar por mais uns tempos... Saiu da sala, contrafeita e bem lampeira (para quem tinha caído), e volta a entrar com a mãe. Esta pede (pela enésima vez) o favor "especial" de fazer nascer o menino. " A Cláudia já não aguenta, olhe para ela!" - e imediatamente ela monta um ar infeliz. A mesma conversa: "Não pode ser, blá blá blá, deixe o bebé crescer, blá blá blá, é melhor para ele, blá blá blá, não há indicação nenhuma para induzir...". Saem as duas, lampeiras e contrafeitas.
Três dias depois, passo descontraidamente no corredor e vejo a mãe da Cláudia ao telemóvel. Inadvertidamente abrandei e ouvi um pouco da conversa: "Filha, com esta médica não te safas... Voltei a pedir-lhe por tudo, diz que não há desculpa para induzir... Até lhe disse que tinhas caido outra vez, mas nada feito. Tenho que ir falar com o Dr. X, ele é mais acessível e está de urgência hoje. Filha, podes passar por cá agora? Diz-lhe que caiste...". Devo ter mudado de cor, e afastei-me para não ouvir mais nada...

domingo, 9 de janeiro de 2005

O verdadeiro motivo

A ficha da doente que se seguia estava em cima da mesa. A enfermeira avisou que se tratava de uma toxicodependente (ou pelo menos era assim que ela a via), com um desdém um pouco escusado. Chamámos o nome dela, e pouco depois entrou na sala da urgência de ginecologia-obstetrícia. Era extremamente magra, com a pele escurecida e bastante peluda. Tinha calças de cabedal, com botas altas, um casaco com pelo na gola e uma bóina enterrada na cabeça. Tinha um ar pouco "higiénico". Cumprimentámo-la, e perguntámos do que se queixava. Disse "tenho muita comichão por trás, muita muita, dá vontade de ficar lá com o chuveiro a dar com força... E parece que tenho um pedaço de carne lá no cú, parece que é lá que tenho a comichão.". Tinha começado há algumas semanas. Não nos soube explicar porque não tinha ido à médica de família, só que "a comichão no cú não me deixa dormir...". Despiu-se da cintura para baixo (deixou o casaco e a bóina), deitou-se na marquesa de observação, e colocou-se na posição de observação. Tinha um condiloma no ânus (uma lesão provocada por um vírus transmitido por via sexual), mas fora isso nada mais. Vestiu-se novamente, e recomendámos que fosse à médica de família, visto não se tratar de uma situação urgente. Justificava seguimento, mas não no SU. Agradeceu, levantou-se, apertou-nos a mão, e de repente (com "aquele" ar de quem tinha aquela na manga desde que entrou) diz "ah, é verdade, tinha mais uma coisa para lhe perguntar... Eu tenho uma amiga, lá num centro onde faço umas coisas (?), que tem aquela doença, sabe a SIDA... No outro dia usei um pente dela, nem pensei bem, e depois lembrei-me que ela tem umas feridas horríveis, sabe, da doença que tem, na cabeça, que até têm sangue... Uma coisa horrível, deixou-me cheinha de nojo, arrepiei-me toda, olhe está a ver, ainda agora me arrepio todinha de me lembrar daquele nojo de feridas... Acha que há problema, do pente?". Torcemos ambos o nariz aquela história (muito mal contada), e a minha tutora disse-lhe descontraidamente que estivesse descansada, que não era daquele pente que ela poderia ser HIV+ e que, se havia outros motivos para isso, o melhor era falar com a médica de família. Recordo que a doente tinha lesões sexualmente transmissíveis no ânus... Não era concerteza o pente que a preocupava...

É muito frequente, em urgência e em consulta, esta história dos "motivos ocultos"... Os doentes fazem as suas queixas habituais, conversam "da vida", e à saída disparam o verdadeiro motivo da ida à urgência ou à consulta. Assim como quem não quer a coisa... E nós temos mais é que compreender, sorrir, e começar a consulta verdadeira!

Enfim, histórias do SU de GO...

sexta-feira, 7 de janeiro de 2005

"Esse senhor"

Hoje estive de urgência de ginecologia-obstetrícia. A urgência até foi calma, para começar o ano sabe bem assim... Algumas histórias, no entanto, não podiam deixar de surgir...

É obviamente a especialidade cujas doentes são mais vilipendiadas... "Dispa-se da cintura para baixo, sente-se e ponha uma perna para cada lado. Boa tarde!". É mais ou menos desta forma (caricaturada, ok?) que abordamos as doentes. As queixas são geralmente difíceis de colocar (para as mais pudoradas). Suponho que não seja fácil contar a uma pessoa "sangro da vagina quando tenho relações", "estou com corrimento amarelado e mal-cheiroso", etc... Depois vem o toque ginecológico (ou obstétrico), que envolve sempre um pouco de desconforto (por vezes dor), aparte dos problemas das doentes mais pudoradas. E não me interpretem mal, é perfeitamente normal ter esses pudores!! Para o ginecologista-obstetra trata-se do seu trabalho. É o dia a dia, e é banal. Trivial. Claro que os há mais sensíveis aos pudores, mas no fim de um longo dia de trabalho é difícil para qualquer um fazer um sorriso e demorar meia hora a "quebrar o gelo"...
Outra situação engraçada, também relacionada com os pudores, surge quando as mulheres se colocam na marquesa de observação ginecológica com a roupa interior vestida. Sim, isso acontece... Temos depois que explicar com calma que "vai mesmo ter que tirar as cuecas, D. Ana"...
Uma das doentes de hoje estava grávida de 8 semanas, e tinha umas pequenas perdas de sangue. Depois de a obstetra e eu lhe fazermos algumas perguntas, dirigiu-se para a marquesa de observação ginecológica. Despiu-se atrás da cortina, e sentou-se na bordinha da marquesa, de pernas fechadas, coberta com um lençol, e com um ar enfiado. A médica disse "vai ter que se deitar e por aqui as pernas, ok?". Corou da ponta dos cabelos aos dedos dos pés e disse a frase que marcou o ponto alto do meu dia (de um ponto de vista tragi-cómico): "Esse senhor vai ficar aí?", olhando para mim. Tive vontade de lhe explicar que a vulva dela era a trigésima que eu via nesse dia, e a vagina a vigésima que eu ia tocar, que eu estava ali a fazer o meu trabalho, e longe de mim estava a ideia de encarar aquele momento como algo de sexual (coisa que definitivamente não é...). "Eu sou médico, minha senhora", disse-lhe com um ar descontraído. Ela, cheia de vergonha, colocou-se na posição, e seguiu a observação.


Vários casos interessantes me passaram hoje pelas mãos, mas deixo a sequela deste post para o fim-de-semana...

quinta-feira, 6 de janeiro de 2005

Violência II

Um caso banal, infelizmente demasiado banal, é-nos contado pelos meus vizinhos, aqui.

Vale a pena a visita, como sempre.


PS. Amanhã estou de banco, já tinha saudades! (amanhã arrependo-me das saudades...) Vou às 9h00 e volto às 21h00. Terei certamente histórias para contar, não sei se virei em condições físicas de as contar às 22h00, logo se vê...

quarta-feira, 5 de janeiro de 2005

Ela não quer saber...

Tem 21 anos. Está internada no serviço de Puérperas porque nasceu o seu segundo filho. Sabe o que quer, queria ter estes dois filhos, foi tudo planeado. Não foi a uma única consulta com a Médica de Familia ou com um Ginecologista. A gravidez não foi vigiada, não tendo feito qualquer análise ou ecografia ao longo da gravidez. A meio do período gestacional foi internada por ameaça de parto pré-termo, abandonando em seguida o hospital contra as recomendações dos médicos. Alguns meses depois nasceu o bebé, prematuramente. Quando questionada sobre anticoncepção diz que vai tomar a pílula. Pela evidente irresponsabilidade que apresenta sugerimos que colocasse um implante subcutâneo, que a impedirá de engravidar durante 3 anos. Recusa, diz que é muito nova. Basicamente, é daquelas pessoas que "não quer saber". Não quer saber a opinião dos médicos, não quer saber se a gravidez é normal, não quer saber se o bebé está bem ou não, não quer saber se o bebé fica bem ou não. Não quer saber, pura e simplesmente. Sabe o que quer, de momento quer sair novamente do hospital, apesar de ser ainda cedo.
Voluntários para dar dois pares de estalos? Eu não posso...

segunda-feira, 3 de janeiro de 2005

Mezinhas

As mezinhas fazem parte da cultura portuguesa. Provavelmente farão parte de outras culturas, mas na portuguesa estão bem enraizadas... O que não é necessáriamente mau!! Muitas doenças que passam por si (as vulgares constipações e mesmo as gripes), as chamadas doenças autolimitadas, acabam por ser "tratadas" pelas mezinhas, que dessa forma desentopem os SAPs e SUs... O pior é quando protelam o tratamento de situações que deviam ser "atacadas" rapidamente, mas isso é outra conversa. Mas os tradicionais mel com limão, leite com mel, chá de limão, chá de casca de cebola, etc nunca fizeram mal a ninguém, que eu saiba. Se fazem bem ou não é questionável, mas ajudam a acreditar que sim. Há no entanto algum fundamento científico para os efeitos paliativos destas substâncias! O mel possui componentes antitússicos, por exemplo.

Um problema, esse sim um problema, mas grave é o dos "doutores caseiros"... Quantos de nós não ouvem diariamente no metro "Ai tive um problema de pele igual a esse - igualzinho! - e o médico deu-me esta pomada, toma lá!". Depois vem a hora da verdade e o corticóide para o eczema da velhota faz explodir a incipiente micose da amiga... As pessoas têm que entender que o que faz bem a uma pessoa pode não fazer a outra... Por isso é que nós tiramos um curso de 6 anos... Para aprender a reconhecer as coisas e tratar de forma adequada! Mesmo para uma mesma doença, como sendo a famigerada hipertensão, cada pessoa tem um medicamento que é o mais indicado para ela... E essa escolha depende da idade, do sexo, da raça, das outras doenças que se tenha, etc!
É mais grave ainda o caso em que os "doutores caseiros" decidem baixar ou aumentar as doses dos medicamentos que estão a tomar sem dar cavaco ao médico... Como o tradicional velhote hipertenso que pára de tomar os antihipertensores porque "Fui medir a tensão à farmácia todos os dias desde que comecei o medicamento e quando ficou boa parei...". A hipertensão é uma doença crónica, estava camuflada pelos medicamentos mas não desapareceu...
Problemas como este não isentam, no entanto, o médico de culpa... O estabelecimento de terapêutica, qualquer que ela seja, deve resultar de um "contrato" entre o médico e o doente. Contrato esse em que a informação é vital, sendo que a participação do doente na decisão do acto terapêutico ajuda a que ele a cumpra. Como dizia o meu vizinho no outro dia, a história de "o doutor é que sabe" já tem barbas, e está na altura de mudar...


Agora um aparte: é possível que se avizinhem bastantes histórias sobre Ginecologia-Obstetrícia (GO) neste blog. Durante o próximo mês estarei a estagiar num serviço de GO, pelo que surgirão concerteza histórias, umas mais engraçadas outras mais deprimentes... Provavelmente surgirá o tema do aborto mais uma vez, questão com a qual os Obstetras se deparam diariamente...

domingo, 2 de janeiro de 2005

Uma situação stressante

No 6º ano do curso fiz um estágio de Anestesiologia. Muitas pessoas acham que os Anestesistas não são médicos, mas são. E para quem acha que não tem nada que saber, desengane-se. O anestesista não tem como única função "pôr o doente a dormir", ele mantém a vida do doente durante a cirurgia, responde a todas as situações inesperadas que aconteçam, e realiza uma série de técnicas complexas. São os anestesistas que olham para os complicados monitores utilizados nas cirurgias, olhando assim pela vida dos doentes. Isto para não falar do trabalho do anestesista fora do bloco operatório - já que alguns optam por trabalhar no Intensivismo (com os doentes MUITO doentes cujo equilíbrio é mais instável e por isso necessitam de cuidados permanentes - Intensivos). Na minha curta passagem pela Anestesiologia tive oportunidade de assistir a uma situação - felizmente - rara, muito stressante.

A doente que estava para ser operada tinha uma massa muito volumosa dentro do abdómen, que se supunha tratar de um "quisto" do ovário apesar de os meios complementares de diagnóstico não terem sido suficientemente esclarecedores quanto à sua origem e características. A cirurgia consistia em "abrir para investigar", que ao fim e ao cabo é a tradução do termo científico "laparotomia exploradora". Sendo a massa muito volumosa, e de origem desconhecida, a incisão era vertical e muito grande. Após a indução da anestesia começámos a realizar algumas técnicas, nomeadamente a colocação de um catéter venoso central. Isto consiste na introdução de um catéter (um tubo fino) numa veia do pescoço, para administração de fármacos e soros que não podem ser administrados numa veia periférica (como sendo as da mão). Trata-se de um procedimento muito frequente, que muito raramente dá complicações. Mas naquele caso não foi assim. Enquanto a anestesista colocava o catéter, eu estava descontraidamente a olhar para o monitor. De repente vejo a linha do electrocardiograma alterar-se, ficando semelhante à de um sismógrafo durante um grande sismo. Meio incrédulo, mas já assustado, aviso "Dra., eu... acho que está em fibrilhação...". Ela olha para o monitor e diz "Nah, eles devem estar a usar o Bzzz*... Estão a usar o Bzzz? Não? - voltou a olhar para o monitor - então...". E de repente começou o grande stress. Gritou "tragam o desfibrilhador!!!", os cirurgiões começaram a fazer massagem cardíaca, enquanto enfermeiros e auxiliares corriam fora da sala à procura do desfibrilhador. Por avaria do monitor da sala ao lado o desfibrilhador estava a servir para monitorizar o doente dessa sala. Imediatamente trouxeram o desfibrilhador, retiraram-se os panos cirúrgicos e a anestesista deu o primeiro choque: "Está carregado! Afastem-se! Vou chocar!". Ao "clack" dos botões e da descarga seguiu-se uma contracção de todos os músculos da doente. Estando a cirurgia a decorrer há algum tempo (já a massa tinha sido removida), o abdómen estava completamente aberto. Com o choque, os intestinos practicamente saltaram para fora do abdómen, para tão depressa como tinham saído voltarem ao seu lugar. Olhos no monitor, onda de choque, um segundo de suspense, "Continua em fibrilhação! Carregar a 300 Joules! A carregar... Está carregado, afastem-se todos, vou chocar, afastem-se!" e "CLACK!". Novamente os intestinos saltaram, novamente regressaram. Mais uma vez todos os olhos da sala se voltavam para o monitor, e passada a onda de choque veio... ritmo normal! "Conseguimos, vamos rapidamente pôr panos novos, os cirurgiões trocam de fato e luvas, vamos acabar isto!". Devolvemos o "monitor improvisado" à sala do lado e esquecemos o catéter venoso central, enquanto os auxiliares iam buscar novos panos, fatos e luvas. Fomos observar os registos informáticos nos parâmetros vitais recolhidos durante aquele tempo, e apercebemo-nos que toda a reanimação tinha decorrido em 3 minutos! E parecia ter demorado meia hora... Finalmente, a cirurgia concluiu-se com sucesso e o ritmo cardíaco ficou normal até ao fim. Mas o nosso ficou um pouco acelerado até ao fim da cirurgia...


* Bzzzz é o nome "carinhoso" do bisturi eléctrico... :)