domingo, 19 de dezembro de 2004

Diferenças

O Serviço de Urgência é uma parte muito importante da vida do médico hospitalar. Não só tem a oportunidade de colocar em prática os seus conhecimentos numa altura em que a rapidez de actuação é imperativa, como tem também a oportunidade de lidar com pessoas de todas as raças e credos, com todo o tipo de fundo socio-económico. Enquanto há pessoas com crenças, valores e hábitos semelhantes aos nossos, há também pessoas completamente diferentes de nós, e aí a convivência numa situação de stress (como sendo o SU) pode não correr da forma esperada.
Um clássico exemplo é a etnia cigana. Apesar de, na sua grande maioria, viverem em condições degradadas e com saneamento básico mínimo ou ausente, tendem a ser bastante preocupados com a saúde. Dessa forma, acorrem com muita frequência aos hospitais. Por uma questão cultural, deslocam-se sempre em grupos familiares numerosos, e é muito habitual vermos às portas das urgências as suas carrinhas brancas ou bejes* cheias de roupa e de gente. As crianças brincam nos relvados dos hospitais, e muitas vezes os mais velhos fazem piqueniques. Já nada me surpreende desde que vi um grupo a jogar às damas no chão, à porta do SU... Este comportamento não é limitado às Urgências, já que quando um indivíduo está internado no hospital toda a família vela em seu redor, nos corredores do hospital, nas cantinas e nos arredores. Este comportamento gera muitas vezes conflitos com o pessoal de saúde e com os seguranças dos hospitais, que por aceitação da cultura diferente ou provavelmente algum receio, têm uma atitude em geral mais permissiva com eles. Outra diferença cultural significativa relaciona-se com a atitude respeitadora que têm para com os idosos (e aqui ganham um ponto em relação à sociedade "ocidental"...).
Em termos médicos as diferenças culturais também se fazem sentir. Para além da menor qualidade do saneamento - que nos faz ponderar com maior frequência as patologias infecciosas - há uma questão genética muito particular. Uma vez que os indivíduos de etnia cigana casam com outros da mesma etnia, muitas vezes dentro da família (primos direitos), e tratando-se de um número relativamente pequeno de indivíduos, as doenças genéticas têm um peso maior do que nas outras etnias - os erros genéticos exibem-se e perpetuam-se entre gerações com maior facilidade. É relativamente frequente os pediatras hospitalares conhecerem as crianças ciganas com anomalias genéticas pelo nome, já que são muitas vezes "clientes habituais".
Este exemplo ilustra de uma forma extrema aquilo com que lidamos todos os dias: cada doente é um caso particular, fruto de um cruzamento da sua genética, da sua educação, da sua sociedade, das suas vivências. E por isso não há "chapa quatro".


* escreve-se assim?