sábado, 4 de dezembro de 2004

A morte

No nosso dia a dia lidamos com a morte de variadíssimas formas... Morte dos nossos familiares, amigos, conhecidos e mesmo dos desconhecidos, que através da televisão nos chegam a casa.
A perspectiva da morte em Medicina é bastante diferente, simultaneamente por ser bastante frequente e porque envolve responsabilidade profissional. Obviamente que com a experiência se aprende a lidar com a situação, mas uma morte nunca é vivida com indiferença.

O senhor José* tinha já 80 anos. Tinha sido engenheiro electrotécnico, mas as suas doenças tinham-no impedido de continuar a trabalhar. Sim, as doenças, porque a idade só por si nunca o iria parar. Estava internado num Serviço de Medicina Interna onde tive aulas práticas de Medicina Interna no 4º ano. Como aluno do 4º ano claro que não estava sozinho: em torno da cama do doente constituíamos um pequeno rebanho de 4 alunos. Tinha-nos sido pedido que observássemos o Sr. José durante uma semana, para na sexta-feira discutirmos o caso dele com o Assistente e os restantes 20 alunos da turma. Ao longo dessa semana tivemos longas conversas com o Sr. José, que tinha sempre histórias para contar, das quais se lembrava perfeitamente apesar de não ser capaz de nos contar os detalhes das suas doenças. Por esse mesmo motivo tivemos também longas conversas com a sua mulher, 20 anos mais nova, no sentido de entendermos melhor as patologias que o afectavam. A mulher era-lhe muito dedicada e, naturalmente preocupada, contava os pormenores detalhadamente para que não nos escapasse nada que pudesse ser importante no seu tratamento. Mas o estado do Sr. José, apesar da idade e das múltiplas patologias, não era nada mau, e esperávamos uma alta relativamente próxima. Quando na sexta-feira me dirigia para a faculdade para a dita reunião, levando no meu carro uma das minhas colegas de grupo, avistámos a esposa do Sr. José à porta da morgue do hospital. Sobressaltados aproximámo-nos. Ela estava agitadíssima, falava muito depressa, e no meio de toda a agitação entendemos "Ele faleceu esta noite!". Estava preocupada com o paradeiro do corpo, justificando desse modo a agitação - na verdade a preocupação servia-lhe naquele momento para esconder a tristeza de si própria, porque quanto ao paradeiro do corpo não havia dúvidas: estava na morgue do hospital. Ainda meio aturdidos, e também atrasados para a reunião, despedimo-nos. Ela agradeceu-nos toda a atenção que tinhamos dado ao Sr. José, e também a companhia que tínhamos feito naquela última semana.
Levávamos nas mãos a história clínica redigida. Encontrámos à porta da sala onde ía decorrer a reunião as outras duas colegas que connosco tinham trabalhado. Conversavam, entretidas, mudando instantaneamente a expressão facial ao verem as nossas caras desoladas. Assim que souberam da notícia entrámos na sala, para apresentar a história. Toda a história clínica estava escrita no presente: "o doente apresenta uma...", e em cada tempo verbal a colega que estava a ler via-se obrigada a corrigir: "o doente apresentava uma...". A relação desenvolvida ao longo da semana com o doente, e a proximidade entre o choque da notícia e a apresentação da história fundiram-se e, a meio da leitura, começou a chorar. Explicámos o sucedido aos restantes colegas e ao Professor, que compreendeu a reacção apesar de recomendar maior prudência no estabelecimento de laços afectivos com os doentes no futuro...

Foi o primeiro contacto com a morte nos Hospitais para todos os membros do grupo, e talvez por isso marcou-nos mais. O calo emocional vai-se desenvolvendo, e ajuda-nos a lidar melhor com a morte. Mas não é nunca suficiente para nos impedir de pensar nisso quando nos deitamos à noite...

*mais uma vez recordo que os nomes usados neste blog não correspondem aos reais