segunda-feira, 6 de dezembro de 2004

Vida!

Para variar um bocadinho, e porque os últimos posts foram um pouco "on the down side" - os títulos atestam-no - vim falar-vos da vida.

Foi no 4º ano da faculdade que eu assisti pela primeira vez a um parto. Diziam-me que o primeiro parto a que se assiste é inesquecível, e eu subscrevo a afirmação na totalidade. Na cadeira de Pediatria foi-nos "encomendado" um trabalho: tinhamos que assistir a um parto, observar a prestação de cuidados ao recém-nascido e seguir o primeiro mês de vida do bebé.
Foi nesse contexto que entrei no bloco de partos do Hospital de Santa Maria. Falei com uma parturiente, que aceitou colaborar comigo no trabalho (naquele momento estava tão aflita com as contracções que dizia que sim a tudo). Tinha recusado epidural, pelo que o espectáculo prometia ser agreste...
O trabalho de parto foi relativamente longo, afinal era um primeiro filho. Deu tempo de tomar um café, um lanche, outro café e quase começar a pensar em jantar... e já tinha entrado durante a noite anterior! Aos poucos a dilatação do colo ia-se fazendo e a cabeça aproximava-se da "saída" sem problemas, até que chegou o período expulsivo. A "mãe" foi levada para a sala de expulsão, colocada na posição adequada, e instruída para fazer força apenas quando surgisse uma contracção. O marido estava ao lado dela, branco como a cal da parede e a respirar mais depressa que ela. Para um aluno de 4º ano aquela posição era um bocadinho constrangedora, a espreitar para o meio das pernas de uma grávida, e o que se seguiu deixou-me um pouco chocado. Ao fazer força para expulsar o bebé as hemorróidas (muito frequentes nas grávidas) inchavam, e por entre os gritos ásperos e rugidos enraivecidos (gritava, tarde demais, pela epidural que tinha rejeitado...) saíam involuntariamente fezes. Comecei a suar instantaneamente, e dei por mim a fazer força juntamente com a mãe (de vez em quando apercebia-me que EU não estava a respirar durante as contracções e sentia-me bastante idiota...). Aos poucos a cabeça foi aparecendo e descendo, enquanto a parteira quase saltava em cima da vagina para que os movimentos que a cabeça tem que fazer para atravessar o canal de parto se fizessem adequadamente. Depois veio a episiotomia (para quem desconhece o termo, trata-se de um corte oblíquo na vagina e períneo que permite que essas estruturas alarguem sem "rasgar" os músculos de forma irreversível.)... Aos gritos agudos da anestesia local seguiu-se um grito imenso quando (durante uma contracção) a enorme tesoura de episiotomia cortou pele, gordura e músculo com um som dilacerante horrendo semelhante ao som feito por uma tesoura a trinchar frango. O sangue começou a escorrer, o bebé começou a saír. E assim que saíu a cabeça jorrou um mar de líquido amniótico e sangue que encheu a sala com um cheiro metálico. Ao mesmo tempo, por absolutamente paradoxal que possa parecer, arrepiei-me da cabeça aos pés, dei um sorriso enorme e os meus olhos encheram-se de lágrimas. Um som novo, um fraco gemido zangado (ainda esperava o choro agudo que vemos nos filmes...), solto pela criatura minúscula e suja que acabara de nascer, fez a mãe e o pai sorrirem e os seus olhos brilhar. Cortaram o cordão umbilical, mostraram o bebé à mãe, e depois, enquanto se dava a dequitadura (saída do resto do cordão e da placenta) e a episiorrafia (sutura da episiotomia), fui assistir aos cuidados ao recém-nascido. O turbilhão tinha passado, e agora tudo estava mais calmo. E apesar de ser até então o momento mais horrível e cruento a que tinha assistido, foi sem dúvida dos mais extraordinários: a natureza no seu auge, a criação de vida no seu expoente mais rude e simultaneamente mais belo. Autêntica poesia.