quarta-feira, 1 de dezembro de 2004

A velhota

Eu estava no 3º ano da Faculdade quando me pediram para fazer a minha primeira "História Clínica". Já tinha contactado com doentes antes, nomeadamente nas férias do 2º para o 3º ano com uma assistente do 2º ano, mas nunca tinha feito uma história clínica completa. Numa história clínica colhemos todos os dados da pessoa, relativos ao passado clínico e à doença actual, e fazemos o Exame Objectivo completo (observar a pessoa da cabeça aos pés). Estava com outra colega minha, e juntos fomos colher a história.

"Bom dia D. Maria!". Estava internada num serviço de Cardiologia, e o nosso Assistente tinha-nos recusado qualquer informação prévia, para descobrirmos tudo o que pudéssemos por nós. Era uma senhora de 90 anos muito simpática, que sofria do coração - esta foi a conclusão brilhante da nossa primeira meia hora de conversa... Aliada à nossa inexperiência, a capacidade de "botar discurso" da D. Maria resultou numa conversa amena durante aproximadamente 3 (!!) horas, da qual muito pouca informação clínica surgiu. Falámos da sua doença, também, mas a D. Maria preferia falar do quintal onde tem os seus cãezinhos. "As minhas vizinhas, Deus as tenha, tratam-me dos cãezinhos enquanto estou internada...". Tratou-nos a entrevista toda carinhosamente por "meninos" (e tinha razão...), e dizia-nos a cada 5 minutos "São tão novinhos! Deus os tenha, são tão amorosos!". E nós sorríamos, entredentes pensando se alguma vez alguém nos levaria a sério, mas ao mesmo tempo deliciados com a velhota. O exame objectivo foi uma sombra daquilo que deveria ser, não porque a D. Maria tivesse pudor de se despir, mas porque nós tinhamos vergonha de a observar a ela... Ela dizia "Não tenham vergonha! Alguém tem que fazer isto para que vocês aprendam, não é?", mas nós, apesar de cientes da verdade proferida, continuámos a achar desnecessária a exposição da intimidade. No final já nos convidava para irmos a casa dela "É em Belas, eu mostro-vos o meu quintal e faço-vos um cházinho!". Com um sorriso não fomos capazes de recusar formalmente (mais um fruto da inexperiência), mas "ficou para depois". Beijou-nos a ambos, os seus "queridos", e nós mais uma vez não fomos capazes de negar.
Escusado será dizer que a primeira história clínica, como primeira que foi, foi a mais incompleta de sempre... Assim que virámos costas e nos socorremos dos nossos "manuais" de história clínica apercebemo-nos da imensidade de coisas importantes que nos esquecemos de perguntar. Claro que esta história não só foi interessante, como foi também importante! Não só passámos a esquecermo-nos cada vez de menos coisas, como a fazer as histórias clínicas progressivamente em menos tempo. Aprendemos também que a proximidade e a distância emocional devem coexistir, não só porque não há tempo para estar 3 horas à cabeceira de um doente, mas também para nos protegermos a nós próprios das emoções excessivas.
Mas ali era diferente... Saímos os dois do quarto com um sorriso enorme, e a dizer um para o outro "nunca mais podemos deixar isto acontecer desta maneira!"... e aprendemos um pouco naquela manhã.