Quando estagiava na Clínica Geral, no 6º ano do curso, tive oportunidade de acompanhar um domicílio. Os domicílios consistem na ida do médico à casa dos doentes, quando estes não se podem de todo deslocar ao CS, e quando a situação médica o justifica.
Telefonaram para o Centro de Saúde, a pedir ao doutor para "ir lá a casa". O velhote não saia da cama há já vários dias, e parecia estar mais doente. Assim que desligou o telefone, o Dr. D. olhou para mim com um ar grave. E colocou-me dentro do contexto: tratava-se de uma família numerosa, que vivia toda debaixo de um mesmo tecto, desde os trisavós aos trisnetos. O meio socioeconómico era aparentemente muito baixo, e alguns dos membros da família estavam presos, um deles por homicídio. As perturbações mentais abundavam naquela família, em que filhos, enteados, madrastas, padrastos e pais já perdiam as contas aos parentescos reais.
No carro do Dr. D. dirigimo-nos para a casa da família em questão, seguindo as indicações transmitidas por telefone. O ambiente circundante não parecia muito mau. Uma zona de casas térreas, de nível económico modesto, com alguma desorganização espacial típica da construção ilegal. A casa para onde nos dirigíamos tinha como aspecto exterior um muro alto, verde, com um portão de metal. Assim que nos aproximámos do portão uma dezena de cães aproximou-se do portão, ladrando frenetica e agressivamente. Chamámos os residentes, aproximando-se uma velhota mestiça que gritava com os cães para os afastar. Abriu-nos o portão, e encaminhou-nos para a casa. O caminho para a casa era um trilho de pedras ladeado por lama e ferro velho, coberto de dejectos de cão, ocluído por cordas de roupa com lençóis rotos pendurados. Os cães rosnavam-nos ao passarmos por eles. Entrámos em casa, e chamar-lhe casa era sem dúvida alguma um eufemismo. As paredes, de tijolo entremeado com placas de contraplacado, suportavam um telhado de zinco e plástico. No interior, destacava-se a televisão, rodeada de lixo, loiça suja e restos de comida. Dois (que em tempos foram) sofás davam lugar a quatro crianças sujas e barulhentas. Dois miúdos mestiços e dois loiros de olhos azuis, todos trisnetos da senhora que nos abriu a porta. Um cheiro fétido emanava de cada recanto. Dirigimo-nos para a "divisão" onde se encontrava "o velho", como lhe chamava a senhora, e o choque foi substituido por terror. O "velho", nitidamente em caquexia (magreza e subnutrição extremas), estava deitado num colchão no chão, embrulhado em lençóis empapados nas próprias fezes e urina. Gritava palavras que não existem, interrompidas por insultos e lamentos. Os quatro membros flectidos, a imobilidade das articulações denunciava o longo arrastar daquela situação. Um (muito sumário) exame objectivo e uma medição da pressão arterial depois e o diagnóstico superficial não estava muito longe: provável demência no contexto de condições económicas e sociais muito baixas (e sobretudo sociais!). Pelas minhas costas e membros saltavam pulgas imaginárias (?), que me enchiam de comichões avassaladoras. As minhas mãos, encolhidas, gritavam por água e sabão, e todo eu me sentia porco, sujo, nojento e enojado. Todo o meu corpo gritava por um banho, que certamente tardaria. Reprimi todos estes sentimentos, por trás de uma face de cera inflexível. Passadas as receitas necessárias (inúteis?), e uma boa conversa depois (que caíu em saco roto, certamente), saimos finalmente daquela casa. O velhote estaria melhor em qualquer outro sítio, e teria que ir para o hospital. No entanto, naquele momento o que importava é que tinhamos saido dali, e encaminhavamo-nos de volta para o Centro de Saúde. Envergonhado pela fraqueza que sentira mas não demonstrara, não pude deixar de esboçar um sorriso aliviado quando o Dr. D. me disse: "Eh pá, tou cheio de comichões, mal posso esperar por um banho!". Afinal a experiência não nos torna assim tão impenetráveis...
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