Um dos meus primeiros grandes sustos aconteceu quando eu estava, no 3º ano da faculdade (ou seja muito fresquinho...), a fazer um estágio organizado pela Associação de Estudantes no Hospital de Setúbal (HSB). O estágio era "de Urgência", ou seja, eu ia uma vez por semana para as Urgências do HSB. Lembro-me muito bem de tudo o que se passou comigo nesse estágio, sendo que aprendi imenso com todos os médicos, especialmente com os Internos (que tinham um pouco mais disponibilidade para nós). Passava a maior parte do tempo no SO (Serviço de Observação), absolutamente "atulhado" de doentes, e aos poucos fui ganhando a confiança dos médicos da equipa (e confiança em mim próprio...). Passado algum tempo já observava doentes sozinho, o que era na altura um grande feito para mim.
Já algum tempo de estágio era decorrido, pediram-me para ficar sozinho na sala de aerossóis (onde estão os doentes com dificuldade respiratória), enquanto a médica que lá estava ia lanchar. Não me agradou muito a ideia, não só por ter pouca experiência, mas porque os doentes que lá estavam não eram casos muito simples... O mais complicado dos casos era o de um doente que tinha sido operado à "anca" num Hospital Ortopédico cerca de uma semana antes, que tinha nessa manhã entrado em coma após um período de confusão e agitação. Suspeitava-se de um AVC embólico (uma complicação possível das cirurgias ortopédicas), e não havia TAC funcionante no HSB. Por esse motivo o doente estava a aguardar transporte para o Hospital S. José. Tentei inteirar-me decentemente das patologias dos vários doentes na sala de aerossóis, e acabei mesmo por ter que lá ficar sozinho. O enfermeiro passou o tempo todo a gozar comigo, perguntando-me que doses queria eu dar disto e daquilo (perguntas às quais ele sabia a resposta e eu não...), mas com esse problema lá me desenrasquei (adiando a decisão). Então lá estive, sentado num banquinho, a olhar ansioso para os 5 doentes rezando para que nenhum decidisse descompensar. Ia perguntando à D. Palmira se respirava melhor, ao Sr. António se já não estava tonto, e ia eu mesmo tentando descontrair um pouco. A um dado instante, o doente comatoso levanta os dois braços ao mesmo tempo. Bastante surpreendido, já que o doente estava em coma há largas horas, levantei-me e perguntei "Sr. José, está-se a sentir bem? Não se assuste, o senhor está no hosp...". Estanquei. Senti uma onda de pânico percorrer-me dos pés à cabeça quando me apercebi que ele não me estava a ouvir. Tinha ambos os braços esticados para a frente, as pernas esticadas também, os olhos abertos e revirados, e de um momento para o outro começou a sacudir-se violentamente, numa convulsão provavelmente provocada pelo suposto AVC. Absolutamente sozinho (nem o enfermeiro gozão estava na sala nesse momento), fiz a única coisa que podia fazer: corri para fora da sala, agarrei numa médica que estava a passar e disse-lhe "Está aqui um doente a convulsivar, eu estou completamente sozinho e não sou médico, por isso venha aqui JÁ!". Não que eu tivesse mesmo que explicar que não era médico, o meu ar imberbe falava por mim. A médica e duas enfermeiras que passavam na mesma altura pelo corredor invadiram a sala de aerossóis, onde o indivíduo continuava a convulsivar, com espuma sanguinolenta a sair pela boca. Em dois segundos expliquei a história do doente, enquanto lhe administravam rapidamente um supositório de Diazepam, resolvendo a crise convulsiva passados poucos segundos (provavelmente por si só, mas o supositório ajudaria a prevenir nova crise). Agradeci mil vezes às três "salvadoras", a tremer como varas verdes e a suar em bica, que elogiaram a minha presença de espírito (QUAL? perguntei-me eu na altura...) de chamar imediatamente ajuda. Poucos minutos depois entra descontraidamente a médica, regressada do seu lanche, e pergunta "Então, tudo na mesma, não é?".
Aprendi uma lição: não devia ter aceite uma responsabilidade com a qual não estava preparado para lidar! Mais uma vez o tradicionalmente português "jeitinho" tinha-me colocado numa posição complicada!
quarta-feira, 22 de dezembro de 2004
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