quinta-feira, 2 de dezembro de 2004

Uma partida didáctica...

Andava eu no meio de um rebanho de alunos do 4º ano de Medicina (rebanho do qual eu era um membro na altura) pelo serviço de Pediatria, mais precisamente no "Puerpério". O Puerpério é onde ficam as "recém-mamãs" com os seus recém-nascidos. Tinha-nos sido pedido pela nossa Assistente de Pediatria que fossemos falar com a mãe de uma criança, no sentido de fazermos uma recolha de todos os dados importantes acerca da saúde da mãe e do bebé.
Era uma mãe adolescente de 16 anos, Moçambicana, que tinha engravidado do seu primeiro e único namorado. A gravidez não era planeada, e ao engravidar veio para Portugal (por motivos que não entendemos muito bem no início da entrevista). Não tinham surgido quaisquer intercorrências durante a gravidez e o parto foi de cesariana, por motivos que a mãe não soube explicar. Perguntámos variadíssimas coisas acerca dos antecedentes pessoais da mãe, acerca da gravidez, acerca do parto, observámos o bebé, e como éramos muitos a fazer a entrevista ao mesmo tempo as coisas prolongaram-se durante uns 45 minutos. Já no fim da história clínica, em jeito de despedida, perguntei "Bom, não há então mais doença nenhuma que se lembre de ter tido, não?". Com uma descontracção assustadora disse "Ah, sim, já me esquecia, sou seropositiva!". Um gelo silencioso percorreu toda a sala. Contou depois o resto da história: tinha nascido seropositiva, por transmissão vertical (mãe para filha). Estava tão habituada à ideia, disse, que nem se tinha lembrado de nos dizer antes. Ao fim e ao cabo isso fazia parte da sua vida como a cor do cabelo ou dos olhos: sempre lá tinha estado. A ideia de que o seu filho pudesse ser também seropositivo não a assustava, seria como ela. Herdaria dela o vírus, como herdou dela a cor do cabelo e da pele. Ela sabia que havia a hipótese do filho "negativizar" passado seis meses, mas não lhe parecia fazer qualquer diferença. Falou dessa possibilidade com a mesma naturalidade com que nos contou o seu nome...
Saímos aturdidos da sala, num silêncio sepulcral, enquanto ela dava o biberon ao bebé com um sorriso nos lábios. A nossa Assistente de Pediatria tinha-nos pregado uma partida didáctica...