terça-feira, 7 de dezembro de 2004
Esquizofrenia
Entre os vários estágios que fiz ao longo do curso, os de Psiquiatria foram os que mais me custaram... Confesso que não é uma especialidade da minha preferência... No entanto, como todos os médicos precisam de lidar com todas as pessoas, das mais às menos equilibradas, é necessária alguma experiência nessa área! Da psiquiatria mais ligeira à mais pesada, pelas mãos de todos os médicos passam doentes menos sãos do ponto de vista psicológico.
O Luís, de 44 anos, estava internado no H. Júlio de Matos porque tinha, um dia, ficado muito agitado, com um discurso ininteligível e mostrando agressividade para com o seu irmão. Quando comecei o estágio tinha sido internado há duas semanas.
A minha presença na sala, juntamente com a sua psiquiatra, não o deixara muito à vontade. Já estava calmo, e apesar de uma aparência bastante desmazelada tinha um discurso aparentemente coerente. Aos poucos começou a ficar mais relaxado na minha presença, e a falar mais descontraidamente. Contava como fazia as suas pequenas esculturas em madeira "eu faço coisas na madeira que as pessoas não percebem. Não são só pessoas que eu faço, faço mais coisas. É que não decido faze-las sozinho, está a compreender?". Não, ele teria que me explicar. "Quando estou deitado, às vezes sinto uma luz... Assim (gesticulava muito) por cima da minha cabeça. O que é essa luz? Disso não posso falar, é o meu segredo.". Mas aos poucos ia contando: "Essa luz tem muitos volts, mas é uma luz suave. É o Espírito Santo, sinto um arrepio quando ela me entra no corpo. E eu sou o segundo grande herói. O primeiro foi Jesus Cristo." Contou-me como estimava todas as formas de vida, como tinha salvo uma formiga da morte colocado-a em cima de uma folha. "Eu sou o ser humano perfeito, entende? E sou um magnata, um milionário.".
Depois, quando a conversa se afastava um pouco dos assuntos religiosos, contou que nos dias que se antecederam o internamento se sentia muito estranho. Era capaz, afirmava, de decorar as matrículas de todos os carros quando eles passavam, e sentia-se muito confuso, via "o mundo todo ao mesmo tempo". Contou também que se tinha divorciado há alguns anos, e que tudo se tinha precipitado aí. Recusava terminantemente falar sobre a ex-mulher e os motivos do divórcio, mas desde então tinha começado a guardar as suas "relíquias". Acumulava no seu quintal todo o tipo de material, ferros, madeiras, partes de carros, objectos que "para as pessoas não têm valor, mas as pessoas não percebem nada...". E sim, tinha sido mais ou menos desde então que o Espírito Santo lhe tinha começado a entrar no quarto e atravessar o seu corpo. Quando lhe perguntei se Deus falava com ele disse-me: "Não posso falar sobre isso, é o meu segredo, já te disse!".
E assim tinha ido ali parar. Não sabíamos se era uma esquizofrenia simples ou se estava associada a uma componente afectiva (já que assediava todas as enfermeiras e doentes internadas e os seus delírios eram muito megalómanos). Mas o Luís tinha um problema grave do foro psiquiátrico, certamente "esquizofreniforme". Com a idade que tinha, o longo tempo de evolução e várias outras características, o prognóstico era bastante mau. Estava já sob terapêutica agressiva, mas mantinha-se um quadro delirante marcado. Estaria, talvez, condenado a ser um doente psiquiátrico para o resto da sua vida...
Por
JC
Etiquetas:
Hospital
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