quarta-feira, 15 de dezembro de 2004

Reanimação

Uma das alturas mais stressantes da vida de um médico são as reanimações. Quer entre um doente na urgência em paragem cardiorrespiratória, quer ela ocorra a um doente internado num serviço. Mais stressante ainda será assistir uma situação destas na rua... Felizmente nunca me aconteceu ter que socorrer alguém na rua, por isso dessa experiência não posso falar!

A primeira reanimação em que participei como membro activo foi no 5º ano da faculdade. Desde o 4º ano que fazia bancos (voluntariamente, claro) com uma equipa de Medicina Interna no H. Sta Maria com alguma regularidade (praticamente todas as semanas), de modo que já tinha estabelecido uma boa relação com os membros da equipa. Tinha assistido já à entrada de vários directos (doentes emergentes que entram directamente para a sala de reanimação), mas o meu papel tinha-se resumido a encolher-me num cantinho da sala para não incomodar. Um desses dias, estava eu na Sala de Observação (SO) a ver doentes, quando toca a campainha dos directos. Todos largámos o que estávamos a fazer e dirigimo-nos para a sala de directos. Toda a equipa (médicos, enfermeiros e auxiliares) preparou rapidamente a sala para a chegada do doente. Nem um minuto depois entra um homem enorme e obeso de maca, com a face arroxeada, em paragem cardiorrespiratória. Em três tempos foi colocado na mesa de reanimação, os enfermeiros canalizaram veias periféricas, foram colocados eléctrodos para avaliar o tipo de ritmo cardíaco e os parâmetros vitais foram observados pelos médicos. Eu, escondido no meu cantinho para não atrapalhar a dezena de pessoas que se agitava em torno do corpo, prestava atenção a todos os detalhes. O doente estava em assistolia (termo científico para a linha plana no electrocardiograma), o que não representava bom prognóstico (seria bem mais fácil reverter uma fibrilhação ventricular com um choque...). Um dos médicos, por sinal um médico muito alto e forte, começou a fazer massagem cardíaca, enquanto os outros administravam fármacos adequados e tentavam intubar o doente (colocar um tubo da boca até às vias respiratórias para facilitar a ventilação). O tempo passava, e nem a assistolia desaparecia nem conseguiam intubar o doente, que devido à sua obesidade era bastante difícil. Chamou-se a Anestesiologia (com grande prática de intubação) para tentar intubar, que em poucos segundos se pôs na sala de reanimação. E foi com a chegada da anestesista que eu, no meu cantinho, fui acossado para agir: o médico que estava a fazer massagem cardíaca apontou para mim e disse "Tu! J.! Vem para aqui, estou cansado!". Imediatamente desatei a suar profusamente, o meu coração começou a galopar e disse "E-eu?!". Mas não tive tempo para hesitações, num instante estava a substitui-lo e a fazer massagem cardíaca. O começo foi atribulado: a maca era altíssima, eu não, e precisei de um estrado para fazer massagem cardíaca de forma adequada. Na minha cabeça revia os passos que tinha aprendido com "os bonecos" para fazer tudo correctamente. Coloco as mãos em cima do esterno do doente e faço a primeira compressão: senti imediatamente dois ou três "crack!" debaixo das minhas mãos... Lembrei-me da frase proferida pela instrutora das aulas de reanimação: "com força suficiente para ser eficaz, mas de preferência sem partir costelas!". Se já estava suado, mais fiquei, e moderei a força das compressões seguintes. Entretanto a anestesista tentava intubar o doente, mas até ela estava com uma dificuldade imensa. Quando finalmente parecia intubado, começei a sentir algo estranho. Estava com mais dificuldade em fazer as compressões: parecia que o abdómen estava cada vez mais volumoso... "Está no estômago, o ar está a entrar para o estômago!", disse. A anestesista correu para o doente novamente, e confirmou, descomprimindo o ar no interior do estômago, que de facto a intubação não tinha sido eficaz. Voltou a tentar, e finalmente conseguiu. Entretanto passavam-se talvez três ou quatro minutos desde que eu tinha começado a massagem cardíaca (ou seria um ou dois?!?), e os meus braços estavam absolutamente entorpecidos, as costas doíam-me como se eu tivesse 90 anos, a minha camisa estava encharcada, e o meu coração galopava como se não houvesse amanhã... O coração do doente é que não parecia seguir o exemplo do meu... Algum tempo depois, bastantes fármacos depois, e uma substituição iminente (eu estava quase a morrer ali também), o coração do doente pareceu responder. Todos me gritaram: "pára!", porque a massagem interfere com o electrocardiograma, e quando parei confirmámos o que parecia: tinhamos tido sucesso! O coração batia por si! Desci do estrado, e fui com alguns dos outros de volta para o SO, descansar um pouco, com um sorriso nos lábios. Apercebi-me então que era o único com um sorriso nos lábios... Perguntei porquê, e rapidamente percebi: todo o tempo decorrido, acrescido da deficiente ventilação, tornavam muito prováveis a irreversibilidade dos danos cerebrais. Ou seja, provavelmente aquela reanimação resultaria numa permanente "ligação à máquina"... Pouco depois, e afinal para nosso alívio, disseram-nos que o doente não tinha resistido, acabando mesmo por falecer...
Nunca cheguei a perceber se a "minha" primeira reanimação tinha sido um sucesso ou não...