Nenhuma altura é melhor do que depois do Natal para falar da família e dos amigos.
Obviamente que família e amigos todos temos, e não sou eu que vos vou falar do que é te-los! E qualquer que seja a nossa profissão, os familiares e amigos aproveitam sempre para fazer umas perguntinhas, e pedir uns favorezinhos... O meu caso não é diferente!
Um qualquer Natal, em redor da mesa repleta de doces: Tiro um sonho cheio de molho, e ponho-o no meu prato. "J., vais comer isso? Tu, melhor do que ninguém, sabes que isso faz mal!" diz a minha mãe. O meu tio, diabético, reclama "deixa o rapaz, isso é só para os diabéticos!". Segue-se uma discussão filosófica sobre calorias, fritos, hidratos de carbono e proteínas em que todas as frases acabam em "É ou não é assim, ò sotôr?" (em tom jocoso). O meu sonho acabou de perder todo o sabor, transformando-se num molho de calorias embebidas em óleo de fritar. "As coisas não são assim tão simples, essas coisas variam de pessoa para pessoa", safo-me eu sem contradizer ninguém para não provocar mais uma discussão. Já antes se tinha avivado a discussão acerca do vinho branco e do ácido úrico, "não é sotôr?", e das natas e do colesterol, "não é sotôr?". Depois do jantar, o meu tio explica-me: quando subo um lance grande de escadas doi-me a barriga das pernas, das duas, mas mais da esquerda... Antes não me acontecia... Já fui ao endireita (torço o nariz), fiquei melhor das costas, mas das pernas estou na mesma! Não sei o que se passa!". Diagnostico-lhe, com mais algumas perguntas, uma claudicação intermitente, e pergunto-lhe porque não foi ao médico de família (e preferiu o médico da família). "Sabes como é, os médicos da caixa... Não sei...". Mais uma vez torço o nariz, e engulo o sapo.
Um ano depois agradece-me o diagnóstico e a recomendação de arranjar uma consulta de Cirurgia Vascular "através da caixa". Curiosamente "o médico da caixa disse o mesmo que tu, saíste-me um grande médico! E o médico operador das artérias mandou-me fazer uns exames que te deram razão!".
Depois vêm as outras situações, bem mais aborrecidas, quando alguém está verdadeiramente doente. Vamos para o hospital de bata vestida, conferenciamos com o médico assistente, vigiamos de perto a situação. Temos que ter o cuidado de não interferir no trabalho dos outros médicos (uma vez que temos o olhar clínico toldado pela proximidade emocional), o que muitos de nós não têm o cuidado de fazer. Mas é, no entanto, difícil não interferir, especialmente se não conhecemos bem o médico assistente...
Outras situações são menos graves e mais caricatas... Alguns amigos entendem que, por estar num curso que estuda o corpo humano, tenho que entender todos os pormenores do comportamento do corpo humano... Um amigo meu pergunta-me: "Porque é que quando faço isto assim dói? E porque é que coçar alivia a comichão? O que é que faz a comichão? E porquê?"... Está visto que é um engenheiro! A minha resposta do costume: "Sei lá, Zé!!". Isto, claro, quando não me entretenho a faze-lo acreditar que tem uma doença potencialmente mortal só porque fica um bocado vermelho quando bebe um copito de nada... "Mas isso do flushing é perigoso?!" pergunta ele...
Não me entendam mal, eu estou sempre disponível para ajudar os meus familiares e amigos! Mas por vezes as coisas não são fáceis... ;-)
domingo, 26 de dezembro de 2004
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