Por vezes as pessoas vão tão de pé atrás para as Urgências Hospitalares que acabam por perverter o sistema de uma forma que não faz sentido. Ainda estão fora do hospital e já estão a falar mal de tudo o que podem...
Eu estava a estagiar nas Urgências Pediátricas de um grande hospital lisboeta. Quando chega uma criança, por ordem de chegada a menos que seja uma situação emergente, ela é encaminhada para a triagem. Na triagem é feita uma observação muito sumária com o único objectivo de definir a sua prioridade, ou seja, entender o grau de urgência que aquela situação representa. A triagem ali é frequentemente feita por enfermeiros. No caso de ser uma situação emergente, são imediatamente chamados os médicos. Os restantes casos são colocados em duas "prateleiras", uma de alta prioridade e outra de menor prioridade, para depois serem chamados pelos médicos para os gabinetes de observação. É um sistema que, pelo menos ali, funciona muito bem e não deixa casos em que é preciso actuar rapidamente à espera por tempo demasiado.Num dia de trabalho como tantos outros chega uma ambulância do INEM com uma criança. Ela é atendida prioritariamente (ou seja à frente das pessoas que vieram em viaturas próprias) na triagem, onde a enfermeira percebe que não se trata de uma situação emergente, nem mesmo de uma situação de alta prioridade. No entanto, e por uma questão de coerência com a chegada aparentemente emergente da criança, colocou a ficha na "prateleira" de alta prioridade, onde havia duas outras fichas. Essas duas outras fichas foram atendidas primeiro, por outros dois colegas meus, e quando acabo de ver o doente que estava a ver chamo a criança pelo intercomunicador. Espero um minuto, não aparece ninguém, volto a chamar pelo intercomunicador. Estranhei a situação, visto tratar-se de uma ficha de alta prioridade com horário de entrada marcado na ficha de há quinze minutos atrás, e fui chamar pessoalmente a criança à sala de espera. Quando me dirigia à sala de espera o segurança dirige-se a mim para me informar do sucedido. A mãe da criança, que a acompanhava, tinha armado um escândalo na sala de espera por estar 10 minutos à espera (segundo ela "nem a ambulância tinha demorado 10 minutos a chegar!") e tinha-se ido embora "para o médico particular" de taxi. Ou seja: usou os recursos de saúde do INEM (que pelos vistos foram bastante eficazes), foi atendida prioritariamente na triagem, foi indevidamente triada a ficha como de alta prioridade, foi chamada 10 minutos depois da sua chegada (não sendo uma situação emergente), arma um escândalo e mete-se num táxi com a criança para o médico particular onde esperará pacientemente na sala de espera... E concerteza terá depois chocado as suas amigas com as descrições horrendas sobre a forma indecorosa como havia sido tratada no "público".
Esta é concerteza uma situação limite... O bom senso das pessoas que recorrem às urgências hospitalares não é, na maior parte das vezes, tão escasso... Mas ainda assim surgem situações semelhantes todos os dias! A classificação do grau de urgência de um caso, seja
por que método for, causa óbvias assimetrias! E ainda bem que assim é! Não se poderia admitir que um enfarte ou um AVC esperassem na sala de espera o mesmo tempo que uma dor de dentes ou uma dor na perna "que tenho há um mês"... Não quero dizer com isto que as urgências hospitalares funcionam bem: não funcionam. Não funcionam bem porque há pouco pessoal (médicos, enfermeiros, auxiliares), na maior parte dos sítios há insuficiente espaço físico, noutros locais há insuficientes meios complementares de diagnóstico, e uma boa parte do trabalho é desnecessário (não são situações que requiram cuidados médicos urgentes). Passamos 24 horas enfiados num buraco onde a velocidade de trabalho é sempre insuficiente, onde lidamos com situações stressantes e angustiantes e com outras que não são minimamente urgentes, e onde toda a gente encontra um motivo para refilar com o nosso trabalho... Pessoalmente, tento que esse ambiente não afecte a forma como falo com todos os que me rodeiam, mas nem sempre é fácil!...
sexta-feira, 10 de dezembro de 2004
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